CONTOS CURTOS, DES-CONTOS
(para ler duas vezes)
CAPRICHOSA
Marco Aurélio Chagas
Ela apareceu na
infância dele e se fortalecia
com o afago dos
pais que, inadvertidamente,
consentiam,
solícitos, os caprichos veementes
do filho.
Sob sua
influência, não via e nem ouvia outra
coisa além do que
ele admitia.
Quando alguém
discordava de sua maneira
de encarar as
coisas ela aparecia e fazia valer
sua autoridade,
desagradando-o.
Intransigente,
não admitia a possibilidade de
um equívoco.
Em companhia dela
produzia atritos
verdadeiramente
lamentáveis no trato com os
demais.
Ela, em sua
argúcia, se valia de disfarces,
como força de
vontade, constância ou
empenho, para
influenciá-lo a pretender
alcançar o
almejado, preso da teimosia e da
cegueira.
Ela, quando agia,
o levava a não admitir, em
hipótese alguma,
variantes nem retificações
de nenhuma
espécie.
O desgosto
experimentado por sua causa, o
fez imaginar
transformá-la «em empenho
consciente da
vontade».
Para quem ainda
não adivinhou, seu nome é
obstinação.
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BONECA
INFLADA
Marco Aurélio Chagas
O desejo de ser admitida e o
prazer pela
lisonja não escondiam a forte
influência que
sofria daquela companhia que
conhecera em
sua infância.
Em sua presença era impelida a
inferiorizar os
outros e a ressaltar sua figura
exaltando-a,
festejando os méritos ou
qualidades próprios.
Diante de um êxito ou acerto ela
se
pronunciava.
As faculdades da inteligência
tinham o seu
livre exercício comprometido,
causando sérios
prejuízos e levando ao descrédito
aquela que
estava sob seu jugo.
Ela afetava seriamente não só sua
palavra,
mas também a atitude e o gesto, obscurecendo
a mente e impedindo que ela visse
e sentisse
honestamente a justa medida do próprio
conceito.
Agradava-lhe, sob seu manto
envolvente e
impetuoso, que os demais fossem
modestos e
dispostos a suportar sua
vanglória.
E a envolvia de tal modo que ela
se afastava
da realidade e isso a impedia de
alcançar um
lugar de preferência entre os seus
semelhantes, porque incitada por
ela, nunca o
poderia ocupar, pois fiticiamente
realçava as
próprias qualidades.
Ao lado dela não era espontânea e
se sentia
incômoda e insegura nos lugares
que
frequentava.
Ofuscada como estava, sentiu que
não
poderia continuar assim
comprometendo a
sua liberdade e imbuída de uma
força de
vontade, resolveu mudar o curso
das coisas e
romper de vez com ela,
abandonando-a em
sua jactância.
Nunca mais ela se atreveu a
procurá-la.
Certamente referimo-nos à vaidade, a que
«fecha o entendimento e prostra a
faculdade
de raciocinar ante a autoestima
levada à
exaltação e até ao paroxismo.»
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